A sério, mesmo, só uma criança a brincar
Sexta-feira, 23 de Junho de 2006
Caminho

Gosto de estradas sinuosas; de não chegar nunca ao destino; de ficar pelo caminho e nunca ter de esperar pelo regresso.

Gosto, agora que o digo, e não sei o que diria ausente numa estrada sinuosa sem conseguir chegar ao destino.

Gosto por pensar que é bom gostar de coisas estranhas e querer que a estranheza se instale em qualquer lugar de mim, nem que seja à força.


Gosto de gostar, antes mesmo de pensar no que gosto.

Viro-me para o lado de onde vem o sol e espero que queime, que me dê uma indicação clara do lugar para onde vou e a que distância fica o norte.


Várias vezes me pergunto o que quero dizer deste gosto que tenho em gostar sem saber de quê e o que quero saber quando o sabor de um gosto me perturba o gosto de outro sabor que já não sabe como o sabor de outro gosto de que gostei.

Jogo, por isso, como o gosto e com a maneira de pensar o gosto.


Gosto de lugares onde ainda não fui; muito mais do que dos lugares onde já estive; e ainda mais do que dos lugares onde estou.

Já não é como era quando o que queria era chegar depressa ao lugar de ocaso.

Espero enquanto espero que a chegada se demore no caminho e aguardo o momento, que não ainda o momento final.

Sobre o tempo fica pendente a sua imperfeição; o seu andar levemente descaído para a indiferença; a bússola pousada no colo a pensar horizontes magnéticos de desejo.


Estamos parados agora no vale de lugar nenhum; ligeiramente à esquerda da fonte da sede eterna; próximos do oásis da desidratação; vigiados de perto pelos satélites da absoluta ausência.

Há setas a indicar o horizonte, erguidas sobre plataformas rotativas que giram com a penumbra e sigo com os olhos o risco altivo de um avião que regressa a casa.


Gosto de ficar por aqui pela parte norte do desejo.

Não monto a tenda porque isso já me pareceria uma concessão ao destino.

Fico à espera como se não esperasse, e com o tempo percebo que já não espero e monto novas teorias da existência, repelindo a fé e a intensidade dos sentidos, substituindo o arfar sagrado do cansaço por novas leituras da realidade, erguendo sempre a vista para uma verdade que já não está lá.


Não é forçoso que o mundo seja perfeito; não é forçoso que se mova; não é forçoso que seja como eu o quero às vezes, nessas vezes curtas em que eu o quero.

Gosto do que está antes, do que vem antes de o movimento ser excessivo, antes de a música ficar demasiado alta, antes de a bebida ter tornado os sentidos inoperantes e as cores serem todas uma, antes de ficar desiludido no lugar que procuro.

Sobre a marcha lenta que antecipa a rigorosa chegada à meta, adormeço as tempestades, arrumo os modelos reduzidos da minha intenção e preparo a partida para outra etapa em que os ventos tenham apagado os trilhos e enfeitiçado a paisagem de miragens.


Prólogo



publicado por prólogo às 23:04
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2 comentários:
De maria carvalhosa a 20 de Julho de 2006 às 18:00

Diz-me: isto é uma resposta torta ao meu post sobre a estrada sinuosa, ou nem sequer passaste pelo meu blog e trata-se de uma simples coincidência?

Um beijo.

Maria


De prólogo a 20 de Julho de 2006 às 19:31
Os textos, mesmo os que não têm palavras, surgem sempre como respostas, reacções aos estímulos que nos vão marcando ao longo dos dias. Agora que dizes, e dada a data em que ambos foram escritos, é muito possível que a leitura do teu texto tenha semeado alguma intenção. Porque é raro o dia em que, disciplinadamente, não percorro os 'links' que estão guardados no zumbido, e terei lido em data apropriada o teu belo e sinuoso texto. Mas sei que este 'caminho' não teve o propósito directo de se confrontar com o teu, porque sei que pensei, aí sim de propósito, um outro texto que ainda não escrevi - que ainda não tem palavras - para me mostrar a mim o porquê de eu não olhar para a distância com o optimismo que em ti distingue os 'esses' dos 'vês'. Obrigado pelos teus estimulantes comentários.


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