A sério, mesmo, só uma criança a brincar

Sexta-feira, 16 de Fevereiro de 2007
Simtoma

Disse que sim podendo dizer que não, digamos assim, como se dizer sim ou dizer não fosse o meu degrau de liberdade. Disse que sim porque sim, podendo dizer não porque não, ou dizer não porque sim, ou mesmo dizer sim porque não. As razões do sim e as razões do não à espera de eco nos hemisférios cerebrais, no norte e no sul da consciência e na ligeireza de ir ali e já vir, à procura outra vez de mais razões para os porquês de sentir.

Disse que sim, querendo dizer sim porque sim, e logo a seguir, assim, sem mais nem menos, descobrir que dizer que sim, agora, aqui, assim, é quase o mesmo que dizer que não, porque se pode dizer sim querendo dizer não, e se pode dizer não querendo dizer sim. Também se pode dizer sim dizendo que se disse não ou dizer não dizendo que se disse sim. Nada é assim simples.

Disse que sim, assim, sem mais nem menos, para depois saber, como já antes sabia, que hoje, nestes dias assim, dizer que sim e dizer que não - deitar mais uma gota de água no mar - é a mesma coisa, assim mesmo. Porque manda a verdade, a tal verdade de que se fala, que nada seja diferente de não ser nada e tudo seja igual a ser tudo, sendo o nada e o tudo tão iguais como o sim o não e o mais e o menos e tudo aqui que já supus serem coisas opostas.

Disse que sim, sem vontade de dizer não, mas já me dizem que o sim que eu disse era não e o não que outros disseram era sim. Dizem-me que ao dizer sim não era bem sim que estava a dizer porque quem quer que dissesse não também sabia que o seu não era, ainda assim, um sim que não se dizia como sim mas como não. Foi assim que o meu sim é agora olhado como um não que eu não disse mas que me garantem que exactamente igual ao não que outros disseram e igualmente igual ao nem sim nem não dos que não disseram nada.

Disse que sim mas sei agora que o meu sim era muito diferente de outros sins que foram ditos por outros e que, muito provavelmente, o sim que eu disse nem sequer era igual ao sim que eu queria dizer. A verdade, sei agora, é que muitos sins e muitos nãos são iguais a outros sins e a outros nãos sem que alguém seja capaz de distinguir os sins dos nãos e os nãos dos sins.

Disse que sim mas já não tenho a certeza de ter dito o sim que queria ou mesmo se disse sim ou não, ou se não cheguei a dizer nem sim nem não na expectativa que outro qualquer soubesse dizer por mim esse sim que eu queria dizer. É assim que agora fico, com o sim atravessado na garganta como já estava antes quando me apercebi que era um sim que queria para subir mais um degrau na liberdade de poder cada um dizer não quando se tratasse da sua própria vontade.


Prólogo


tags:

publicado por prólogo às 21:39
link do post | comentar | ver comentários (1) | favorito

Quarta-feira, 24 de Janeiro de 2007
Armadilha

Há uma armadilha à frente de cada homem. Parece uma palavra e age como uma palavra e provavelmente é também uma palavra, mas antes de tudo é uma armadilha. O homem enquanto criança ainda não sabe. Depois cresce e aprende... e aprende sobre tudo o que aprende, que tem à sua frente uma armadilha. Aprende por isso, enquanto aprende que tem à sua frente uma armadilha, que antes de dizer seja o que for, antes de dizer que queria dizer outra coisa, que o que sente deve ser tanto quanto possível omitido. Enquanto aprende que poderia sentir outras coisas que não aquelas que sente, aprende também que tem toda a conveniência em não sentir o que sente, mas antes sentir o que se torna evidente que devia sentir quando sente.

Há uma armadilha à frente de cada homem. Homem que é homem aprende que essa armadilha está lá, e aprende como evitar a armadilha que está à sua frente. Quando, adolescente, o homem sente e percebe que o que sente não é o que devia sentir, aprende, por experiência própria, a sentir como deve sentir quem sente. Aprende que o gesto brusco de não acreditar, aquele desvio subtil do braço para obliterar o medo, não serve para ser usado no dia a dia das certezas. E aceita, logo a seguir, que toda a sobrevivência passa por fintar a morte. E escuta com atenção aqueles que sabem como evitar a armadilha de saber outras coisas distintas das coisas que tem o dever de saber.

Há uma armadilha à frente de cada homem. Para saber como deve saber, o homem repete o mesmo exercício centenas de vezes - milhares de vezes se necessário - repete o gesto que aprendeu até que o gesto seja seu, e não deixa que alguma vez de dentro de si transborde outra personagem que não a que Deus criou e limou à imagem e semelhança do seu suposto interesse. A mão adulta segura o instrumento que segura a mão adulta e os dois seguem lado a lado como um só, comovidos por serem tão seguros da sua verdade e tão eleitos sobre a vulgaridade dos que não sabem. Dissipada a disfunção, esquecida a armadilha, segue o homem o seu caminho de articulado dever.

Há, à frente de cada homem, o torpor da liberdade. Assombra com a sua sombra, e seduz com histórias antigas. Ao olhar de quem vê, aparenta-se a perdição, negrume e calamidade. Não vale como a vida. E aprende cada homem, em cada dia que aprende, a não olhar de frente, a não sentir o que sente, a consentir em não sentir para além do que está determinado. Avisado, o homem não cai na armadilha. Escuta com atenção as palavras do oráculo, dos santos e dos deuses, e recorre a rituais para se libertar da liberdade. O homem que cresce e aprende, aprende, antes de mais, a saber as fontes do bom saber e a não hesitar no seu confronto com as armadilhas: nenhuma vale contra a vida recebida como oferta num duvidoso saldo de hipermercado.

Há, à frente de cada homem, o torpor da liberdade. Não vale como a vida porque vale mais do que a vida. É apenas aí, no horizonte disforme onde a consciência é autónoma, que vida se chama vida. Mas que interessa isso se os gestos entretanto aprendidos riscaram da memória a rebeldia, para dar à consciência a prática salutar da submissão.

Prólogo


tags:

publicado por prólogo às 23:11
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Fevereiro 2008
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29


posts recentes

Simtoma

Armadilha

arquivos

Fevereiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Maio 2005

tags

todas as tags

blogs SAPO
subscrever feeds