A sério, mesmo, só uma criança a brincar

Quarta-feira, 14 de Março de 2007
Corte

Quando se corta o corpo, o corte que fica no corpo é um corte que fica para sempre como memória do corte que cortou o corpo.

Cortado, o corpo reage ao corte, como se o corte que o cortou fosse um corte sentido.

Cada corpo reage ao seu corte, cortando as ligações do corte ao resto do corpo; cortando de si o corpo cortado e salvando o corpo de um corte que o poderia cortar.

Existe entre o corte e o corpo cortado uma relação de semelhança.

Espera-se entre o corpo e o corte uma relação de pertença.


Quando um corte corta um corpo, encontra na reacção do corpo ao corte uma razão para ser corte.

Antes de cortar um corpo, um corte ainda não é um verdadeiro corte.

Depois de cortar um corpo, um corte já não é um verdadeiro corte.

Antes do corte o corpo é um corpo sem corte e sem memória de ter tido um corte.

Depois do corte, o corpo que foi cortado, é um corpo que tem um corte porque se recorda de um corte que teve.


Fotógrafos de todo o mundo procuram o retrato do corte no momento em que é corte.

Acreditam, aqueles que acreditam, que há um instante, disponível para um instantâneo, em que o corte é.

Perseguem então, os fotógrafos de todo o mundo, os que acreditam e os que não acreditam, o instante dinâmico em que sobre o corpo se manifesta o corte no seu esplendor insubstituível.

Esperam, os fotógrafos, que o corte se confunda com a imagem do corte.

Desejam, os fotógrafos, que o corpo ilumine a imagem do corpo.


Não é seguro que nenhum fotógrafo tenha alguma vez guardado o corte sobre o corpo no momento em que o corte se faz sobre a pureza elementar do corpo.

Divergem as opiniões e as certezas acerca da autenticidade dos cortes que dizem ter sido já impressos preto no branco.

Divergem também as certezas e as opiniões, sobre os corpos que foram cortados e que mostram a memória dos cortes que tiveram.

Nenhum corpo sabe, perante a evidência de um corte, onde ocorreu o corte que o separou de si próprio e cortou, para sempre o corpo dividido.

E se o corte que o corpo insiste é um corte que apenas cortou a superfície aveludada dos sentidos, pode acontecer que seja apenas um corte rudimentar, magra marca de um tempo que adiante se verá não ter acontecido.


Prólogo


tags:

publicado por prólogo às 19:21
link do post | comentar | favorito

Segunda-feira, 22 de Janeiro de 2007
Rebanho

Há um corpo estranho dentro de um corpo estranho e espera-se que o corpo estranho seja capaz de expulsar o corpo estranho de dentro de si.

O corpo estranho, qualquer deles, é estranho porque primeiro se estranha e depois se entranha. Ou o contrário.

O corpo estranho que penetra o corpo estranho, entranha no corpo estranho um outro corpo estranho e espera, sem esperar, que o corpo estranho que invade o corpo estranho, se entranhe, que emprenhe o corpo estranho com outro corpo estranho.

O corpo estranho dentro do corpo estranho, gerando outro corpo estranho nas entranhas, é o anho do sacrifício, o salto desconhecido, a molécula da incerteza.

Sendo Deus o corpo estranho que se entranha e estranha, no corpo estranho que se entranha noutro corpo estranho para gerar mais outro corpo estranho, no estranho corpo da terra estranha, fica cada corpo estranho com a ideia entranhada de ser mais do que um corpo estranho na estranha forma da estranha vida.

O corpo estranho é, como o pensamento estranho, uma estranha combinação de pedaços avulsos que se entranham de maneira estranha, como um vício de antanho, e pertencem como a imagem no espelho ao corpo estranho em que se entranhou.

Como todo o pensamento, que a ser pensamento começa por ser estranho no momento em que se entranha, o corpo estranho é o estranho objecto perdido na generosidade do banho que fará do seu potencial de estranheza o que entender. O corpo estranho sobrevive apenas à contingência de a sua estranheza se entranhar na estranha estratégia da multiplicidade.

Quantas ideias estranhas, quantos estranhos sonhos, quantas estranhas verdades, quantas estranhas ilusões, se ficam pela estranheza de corpos estranhos expulsos, recolhidos à partida pela estranheza do esquecimento e ignorados para sempre pela estranha diversidade. É assim que o universo age, distante da fenomenal consciência.

Um corpo estranho vale tanto como outro corpo estranho. Mas há corpos estranhos que valem mais do que outros corpos estranhos. A vida, a ser alguma coisa abstracta, a ser alguma coisa que não radique na estranheza, é apenas a multiplicação aleatória de corpos estranhos, viáveis por infinitésimos de tempo, inúteis fora de contextos muito singulares, imóveis na sua individualidade, e com sofrimento apenas perceptível nas zonas circundantes onde o grito chega.

Um corpo estranho às vezes ama outro corpo estranho e, por momentos, abandona a aridez singular da abstracção.


Prólogo


tags:

publicado por prólogo às 22:58
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Fevereiro 2008
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29


posts recentes

Corte

Rebanho

arquivos

Fevereiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Maio 2005

tags

todas as tags

blogs SAPO
subscrever feeds