A sério, mesmo, só uma criança a brincar
Quinta-feira, 16 de Fevereiro de 2006
Desagrado
Hoje apetecia-me falar de sagrado. Assim, sem mais nem menos. Pegar naquelas palavras que às vezes tememos dizer, olhar, sentir e dissertar sobre elas, brincar com elas, deitar-me com elas. Tudo isso sem atentar nunca contra o sagrado. Mas não me apetece ir pegar agora em livros e procurar essas tais palavras, dizê-las em voz alta e meter-me pela noite dentro à procura dos lugares comuns que elas encobrem. Até porque este apetite que hoje tenho de falar do sagrado pode ser contra-producente. Porque há um estado de espírito próprio para falar e pensar o sagrado e dado que me apetece falar do sagrado não estou provavelmente com o melhor espírito para o fazer. Não podia, no entanto, deixar de deixar registado este apetite. Mas não. Hoje não é um dia que me apeteça meter o nariz no meio do pó dos livros onde com grande certeza se encontra o sagrado no seu estado mais puro. Eu sei que o sagrado é sempre puro mas mesmo a pureza mais refinada tem os seus altos e baixos. Em termos modernos até poderíamos falar de uma certa qualidade que o sagrado pode ter. Cheguei aqui e reparo que o sagrado saiu sempre escrito com letra minúscula. E agora tenho a dúvida se devo ou não voltar atrás e pôr um 's' grande em todos os sagrados. Será sagrada a palavra 'sagrado'? Vou admitir que não e se houver alguém para quem a palavra 'sagrado' seja sagrada, peço desde já desculpa porque a minha intenção era não ofender. Talvez eu devesse, pelo sim pelo não, pôr um 's' grande porque certamente ninguém ficaria ofendido se a palavra 'sagrado', mesmo não sendo sagrada, tivesse uma inicial maiúscula. Mas não sei. Pode acontecer que alguém mais modelar nestas coisas, ache que já constitui uma ofensa usar uma marca de sagrado numa palavra que não é sagrada. É assim um pouco como deitar comida fora sabendo que há tanta gente a passar fome. É estranho como afinal o sagrado se meteu no meu texto quando eu já tinha desistido de aqui o meter. Acaso eu não posso excluir o sagrado de um texto só porque me apetece? Eu sei que comecei por dizer que me apetecia falar do sagrado. Mas era uma mera hipótese. Também me apetecia agora ir para a praia e não está, evidentemente, tempo para isso. Pelo menos a esta latitude. Do apetecer ao fazer vai uma certa distância. Mas quando dou por mim tenho o sagrado metido com toda a força e impertinência pelo meu texto adentro. A minha consciência diz-me que não devo considerar a palavra 'sagrado' como sagrada. Mas os dados da realidade permitem acreditar que em algum lugar haverá alguém para quem a palavra 'sagrado' é sagrada e que, por consequência, poderá considerar ofensiva a minha falta de respeito por uma palavra que, eu reconheço, não me pertence. Talvez eu pudesse pôr uma advertência no início do texto: "se para si a palavra 'sagrado' é sagrada não continue a leitura deste texto pois poderá considerar-se ofendido e essa não é, em caso algum, a minha intenção". Mas, mesmo aqui, não posso evitar a escrita da palavra 'sagrado', podendo estar, extemporaneamente, a atiçar contra mim o ódio de alguém que desprevenidamente acede ao meu texto. Se ponho uma advertência mais genérica, do género, "cuidado este texto pode ter um carácter ofensivo" estou por um lado a excluir a hipótese de ser lido por alguém que se possa sentir ofendido com o meu texto, mas estou, rigorosamente a propor o meu texto exclusivamente a dois tipos de leitores. Os primeiros são os que pensam "ena, coisas ofensivas, era mesmo disto que eu estava à procura", que vão, não tenho dúvidas, ficar terrivelmente ofendidos e capazes de me matar por não encontrarem no meu texto nada de suficientemente ofensivo para a sua gula coprófila. Os segundos são os que pensam "olha! deixa lá ver o que é que este gajo não quer que eu veja" e que hão-de encontrar alguma coisa realmente ofensiva para alguém, a quem, muito solicitamente, farão ver aquilo que de outra maneira não veriam e que, por isso, os não ofenderia. O melhor mesmo seria apagar isto tudo e ir dormir. Ou então tirar o 's'.

Prólogo


publicado por prólogo às 22:38
link do post | favorito

Comentar:
De
 
Nome

Url

Email

Guardar Dados?

Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 



mais sobre mim
pesquisar
 
Fevereiro 2008
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29


posts recentes

Spam

Certeza

Passatempo

Gurulândia

Bruma

Verão?

Fatídica

Genérico

Corte

Simtoma

arquivos

Fevereiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Maio 2005

tags

todas as tags

blogs SAPO
subscrever feeds