A sério, mesmo, só uma criança a brincar
Quarta-feira, 24 de Janeiro de 2007
Armadilha

Há uma armadilha à frente de cada homem. Parece uma palavra e age como uma palavra e provavelmente é também uma palavra, mas antes de tudo é uma armadilha. O homem enquanto criança ainda não sabe. Depois cresce e aprende... e aprende sobre tudo o que aprende, que tem à sua frente uma armadilha. Aprende por isso, enquanto aprende que tem à sua frente uma armadilha, que antes de dizer seja o que for, antes de dizer que queria dizer outra coisa, que o que sente deve ser tanto quanto possível omitido. Enquanto aprende que poderia sentir outras coisas que não aquelas que sente, aprende também que tem toda a conveniência em não sentir o que sente, mas antes sentir o que se torna evidente que devia sentir quando sente.

Há uma armadilha à frente de cada homem. Homem que é homem aprende que essa armadilha está lá, e aprende como evitar a armadilha que está à sua frente. Quando, adolescente, o homem sente e percebe que o que sente não é o que devia sentir, aprende, por experiência própria, a sentir como deve sentir quem sente. Aprende que o gesto brusco de não acreditar, aquele desvio subtil do braço para obliterar o medo, não serve para ser usado no dia a dia das certezas. E aceita, logo a seguir, que toda a sobrevivência passa por fintar a morte. E escuta com atenção aqueles que sabem como evitar a armadilha de saber outras coisas distintas das coisas que tem o dever de saber.

Há uma armadilha à frente de cada homem. Para saber como deve saber, o homem repete o mesmo exercício centenas de vezes - milhares de vezes se necessário - repete o gesto que aprendeu até que o gesto seja seu, e não deixa que alguma vez de dentro de si transborde outra personagem que não a que Deus criou e limou à imagem e semelhança do seu suposto interesse. A mão adulta segura o instrumento que segura a mão adulta e os dois seguem lado a lado como um só, comovidos por serem tão seguros da sua verdade e tão eleitos sobre a vulgaridade dos que não sabem. Dissipada a disfunção, esquecida a armadilha, segue o homem o seu caminho de articulado dever.

Há, à frente de cada homem, o torpor da liberdade. Assombra com a sua sombra, e seduz com histórias antigas. Ao olhar de quem vê, aparenta-se a perdição, negrume e calamidade. Não vale como a vida. E aprende cada homem, em cada dia que aprende, a não olhar de frente, a não sentir o que sente, a consentir em não sentir para além do que está determinado. Avisado, o homem não cai na armadilha. Escuta com atenção as palavras do oráculo, dos santos e dos deuses, e recorre a rituais para se libertar da liberdade. O homem que cresce e aprende, aprende, antes de mais, a saber as fontes do bom saber e a não hesitar no seu confronto com as armadilhas: nenhuma vale contra a vida recebida como oferta num duvidoso saldo de hipermercado.

Há, à frente de cada homem, o torpor da liberdade. Não vale como a vida porque vale mais do que a vida. É apenas aí, no horizonte disforme onde a consciência é autónoma, que vida se chama vida. Mas que interessa isso se os gestos entretanto aprendidos riscaram da memória a rebeldia, para dar à consciência a prática salutar da submissão.

Prólogo


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publicado por prólogo às 23:11
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Segunda-feira, 22 de Janeiro de 2007
Rebanho

Há um corpo estranho dentro de um corpo estranho e espera-se que o corpo estranho seja capaz de expulsar o corpo estranho de dentro de si.

O corpo estranho, qualquer deles, é estranho porque primeiro se estranha e depois se entranha. Ou o contrário.

O corpo estranho que penetra o corpo estranho, entranha no corpo estranho um outro corpo estranho e espera, sem esperar, que o corpo estranho que invade o corpo estranho, se entranhe, que emprenhe o corpo estranho com outro corpo estranho.

O corpo estranho dentro do corpo estranho, gerando outro corpo estranho nas entranhas, é o anho do sacrifício, o salto desconhecido, a molécula da incerteza.

Sendo Deus o corpo estranho que se entranha e estranha, no corpo estranho que se entranha noutro corpo estranho para gerar mais outro corpo estranho, no estranho corpo da terra estranha, fica cada corpo estranho com a ideia entranhada de ser mais do que um corpo estranho na estranha forma da estranha vida.

O corpo estranho é, como o pensamento estranho, uma estranha combinação de pedaços avulsos que se entranham de maneira estranha, como um vício de antanho, e pertencem como a imagem no espelho ao corpo estranho em que se entranhou.

Como todo o pensamento, que a ser pensamento começa por ser estranho no momento em que se entranha, o corpo estranho é o estranho objecto perdido na generosidade do banho que fará do seu potencial de estranheza o que entender. O corpo estranho sobrevive apenas à contingência de a sua estranheza se entranhar na estranha estratégia da multiplicidade.

Quantas ideias estranhas, quantos estranhos sonhos, quantas estranhas verdades, quantas estranhas ilusões, se ficam pela estranheza de corpos estranhos expulsos, recolhidos à partida pela estranheza do esquecimento e ignorados para sempre pela estranha diversidade. É assim que o universo age, distante da fenomenal consciência.

Um corpo estranho vale tanto como outro corpo estranho. Mas há corpos estranhos que valem mais do que outros corpos estranhos. A vida, a ser alguma coisa abstracta, a ser alguma coisa que não radique na estranheza, é apenas a multiplicação aleatória de corpos estranhos, viáveis por infinitésimos de tempo, inúteis fora de contextos muito singulares, imóveis na sua individualidade, e com sofrimento apenas perceptível nas zonas circundantes onde o grito chega.

Um corpo estranho às vezes ama outro corpo estranho e, por momentos, abandona a aridez singular da abstracção.


Prólogo


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publicado por prólogo às 22:58
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Quarta-feira, 3 de Janeiro de 2007
Imitação

De quantas maneiras posso eu não saber a mesma coisa?

Fiz as contas e fiz de conta que continuei a não saber.

Que saber poderia eu ter para saber que o meu saber é suficiente?

Não sei, nem sei como saber.

Por isso não sei ainda o suficiente para saber que o que sei é suficiente.

Mas já sei, e estou convicto, que o que sei é mais do que precisava saber para saber o que sei.

Há ocasiões em que sei que já sei tudo.

Não são muito frequentes – diria mesmo que são cada vez mais raras – mas quando acontecem trazem para o elemento instantâneo da memória formas quase certas da existência.

E fico, nesse momento, com certezas quase permanentes sobre o destino e sobre a realidade.

Formas ocultas sem dúvida, sem dúvidas, sem hesitações, sem tristezas, sem tédios e sem medos.

Como se soubesse alguma coisa.

Sabendo ou não sabendo resta sempre alguma dúvida sobre o saber se o saber que se sabe é todo ou apenas parte.

E se um saber que se sabe não sabe se é o saber todo que saber é esse que o saber que sabe não sabe?

Que banalidades haverá para lá do saber tudo?

Posso supor que sei para concluir a seguir que se souber não tenho que supor que sei.

E mesmo que não saiba fico na dúvida se o que não sei é ainda um saber a que falta saber.

Mas o meu jogo há-de ser sempre com o saber.

Não com a mera acumulação de dados – que sei eu? – nem com a estranha ilusão de transformar tudo em números.

O meu jogo há-de ser sempre com essa vacuidade do próprio saber, com aquelas coisas que serão – quem sabe? – universais no tempo e no espaço; saber e conhecimento que não perdem validade nem têm prazo.

O meu jogo é saber do próprio saber uma formulação eterna e insaciável de partículas capazes de conviverem todas no mesmo lugar sem que o espaço-tempo as perturbe.

Mas eu não sei se existe esse saber.

Sei que não sei se existe esse saber e isso é uma forma de saber que posso saber mesmo não saber.

E saber não saber pode ser o saber que é possível quando ainda não se sabe nada.

Porque até hoje, na minha busca desastrada de saber mais, mais não tenho encontrado que saber que não sabe, conhecimento que não conhece, tempo que passa, espaço que se ocupa, energia que se gasta e medo que se renova.


Prólogo



publicado por prólogo às 01:20
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