Sabes, eu queria não saber o que sei, ter a certeza que o que sei não é certo, discordar de mim como se fosse uma frase mal dita.
Queria saber outras coisas que me dessem da verdade outra perspectiva e saber ao mesmo tempo que o que soubesse podia ser tão falso como outra coisa qualquer.
Era fundamental para o meu equilíbrio que aquilo que sei, mesmo quando digo que não sei e me ponho com audácias de pensamento a querer parecer que não acredito que sei alguma coisa, fosse esquecido, obliterado da minha memória, e, mais do que da memória, do automatismo dos meus movimentos e dos meus sentidos.
É uma questão de vida ou de morte.
Quando eu te digo que sei o que quer que seja, e mesmo que não saiba ou queira que penses que não sei, apesar de saber ou me parecer que sei, fico, inevitavelmente, retido no lado mais obscuro da minha dimensão desconhecida e oculto das certezas.
Eu digo-te que sei e espero que saibas ler naquilo que digo uma insegurança no meu saber que eu sei que não tenho mas não tenho a certeza se é uma insegurança real ou apenas uma maneira de te fazer saber que não deves confiar no meu conhecimento.
E ao dizer que não sei, como às vezes acontece, mesmo que saiba ou tenha a vaga impressão de saber, sei que o digo de uma maneira que espera que penses que sei, para que, apesar da minha emissão de ignorância, reste na tua mente a confiança de desconfiares de eu não saber.
Eu sei que quando te digo que sei, sabendo que não sei, corro o risco de ter de me defrontar com a demonstração do meu desconhecimento.
E sei que haverá um dia em que perceberás que há coisas que te disse que sei e afinal não sei e outras que reconheci não saber quando, sem querer, posso acabar por revelar saber.
E sei também que esse momento pode ser uma espécie de libertação de um nó de sabedoria que é demasiado apertado para transportar e partilhar em dias e dias de reconhecimento.
É como se esperasse que tu, lendo do meu saber aquilo que não o é, chegasses àquilo que de facto sei, contornando o meu saber pelo lado de fora e denunciando, ainda que intimamente, a fraude de o meu saber ser outro que não aquele que te digo ser.
E é por saber que queria afinal não saber daquilo que sei e, sabendo outras coisas, conhecendo outras vias paralelas ao meu real percurso, arriscar outro saber e outras certezas que pudesse dizer-te directamente sem necessidade de dizer que sei o não sei e que não sei o que sei.
Eu queria não saber o que sei, estar esquecido da história que se instalou na minha verdade e passar a saber outros gestos e outras poses, outros passados e outros destinos, outros que fossem afinal aqueles que soubessem aquilo que tu também sabes.
Prólogo
Deverá haver um termo intermédio entre existir e desistir. Ou mesmo um degrau acima e outro abaixo. Uma gradação que deixe escolher a quem escolhe - a quem quer e tem vontade - a área de serviço que não existe, nem desiste. Haverá mesmo, assim acredito, um não existir nem desistir para os que não têm vontade, nem vontade de ter vontade.
Começa-se, digo eu, por saber de um lugar e sobre o lugar de que nada se sabe inventar um nome - provisório como todos os nomes - um nome inicial para sabermos do que falamos quando falamos daquele lugar sobre o qual nada sabemos. Do lugar que desconhecemos podemos chegar a todos os outros lugares também incógnitos e com eles fazer uma geografia do desconhecido. Dizemos então que estivemos neste lugar em data incerta, muito antes de outros, primeiros no lugar e no nome e perfeitos por isso e por não sabermos.
Depois, sabido o nome, que é sempre um nome provisório, partimos em viagem. Basta saber o nome para que a seguir já seja possível partir, porque agora já sabemos o nome de um lugar de regresso e, mais ainda, sabemos de um lugar que ninguém sabe e que pode ser anunciado como tesouro particular.
Numa viagem, enquanto o nosso olhar pousa sobre lugares que já não são os mesmos do andamento anterior, dizemos aos desconhecidos que sabemos de um lugar que eles não sabem e deixamo-los com desejo, também eles, de viajar, de partir, de sair do lugar onde estão para verem os lugares onde nunca estiveram. O lugar de nome provisório será assim divulgado para que conste de outros inconscientes colectivos e solicite mistério e magia na imaginação crispada de quem segue todas as setas salivares e ignora o som cavo do interior.
Durante a viagem que fazemos à procura de lugares de que não ouvimos falar, propomos aos desconhecidos desses lugares os nossos, para os deixarmos ansiosos e desanimados. Ficamos assim na posse, não só de um lugar novo com nome provisório, como também de pessoas provisórias, divididas entre existir e desistir, ignorantes como nós, como eu, de alternativas, mas mais ignorantes do que nós, do que eu, por ainda acreditarem em lugares que nunca viram.
As viagens acabam por acabar. Mesmo que logo a seguir comecemos outras, mesmo que o fim de uma etapa seja o início de outra, há um momento em que dizemos, em que digo, esta viagem chegou ao fim. Estou cansado, acabo aqui a viagem que comecei no lugar que descobri com nome provisório. E mesmo que eu continue a caminhar enquanto falo do fim da minha viagem, é aí nesse curto espaço de uma frase que se delimita o fim e o início da frase seguinte.
Há a meio de qualquer viagem um momento de desânimo. Do lugar com nome provisório incluído avulso na carta de navegação, fica, com o tempo, a imagem nítida de ter sido uma miragem. Chora-se então pelo lugar perdido e diz-se aos desconhecidos dos novos lugares da viagem, que havia um lugar que era mais lugar do que este, em que entre existir e desistir, muito para além do possível, havia outras nuanças.
Depois, depois do meio da viagem, depois do momento de desânimo, o corpo incorpora a pouco e pouco a miragem e dá ao real o colorido novo da consciência.
Prólogo
O meu modo de vida é andar à superfície. Há uma pele nos objectos que delimita, com clareza quase ilimitada, o seu lado exterior do seu lado interior. Claro que só o digo assim porque estou a olhar para os objectos na minha perspectiva superficial e portanto também a clareza quase ilimitada a que me refiro é uma clareza quase ilimitada mas superficial. Também é à superfície das coisas, dos objectos portanto, que sou capaz de encontrar, sem grande esforço - como é próprio de andar à superfície - um lado exterior, que é, por definição e prazer, o meu lado, e um lado interior que, por razões próprias do meu modo de vida, só me interessa de maneira muito superficial.
Aqui à superfície sou mais do que eu. Como se estivesse ao leme, levando a nau a bom porto.
Os corpos interagem pela respectiva superfície. Tocam-se, mas não se chegam a tocar verdadeiramente. A parte de um corpo que toca a parte de outro corpo é apenas a instável e probabilística e quântica nuvem electrónica das suas moléculas que toca apenas a quântica e probabilística e instável nuvem electrónica das moléculas do outro corpo. Nesse toque há sempre, numa superfície cuja mínima espessura desafia a imaginação, uma troca de electrões que se se desse o caso de terem uma individualidade ou um nome próprio, dariam a um investigador, ainda que superficial, a hipótese de saber que objecto tocou em que objecto, que corpo roçou em que corpo, que coisa chocou com que coisa.
É à superfície que ocorrem os contactos. É à superfície que ocorrem as trocas. É à superfície que se traçam os caminhos e se percorrem as estradas e se escrevem os desejos.
Se a terra fosse uma maçã, a espessura habitável seria a fina casca. É aí que eu moro, nesse lugar apertado mas suficientemente vasto para as minhas exigências.
O meu sonho é ir ao fundo das coisas. Existe textura, forma e peso debaixo da pele. O único mal de andar à superfície é a incómoda e permanente sensação de haver uma massa que nos suporta, um plano que não é o nosso plano, um fundo a que não acedemos, uma espessura que é mais espessa que a razão, um interior que existe sempre, mesmo quando tentamos desvendá-lo. O que não está à superfície pressupõe o absurdo da crença. Deixo isso para o sonho. Adormeço na fase líquida e mergulho na lava, à espera de perceber, à espera de saber o que é a verdade. Durante o sonho pego nas moléculas dos objectos e separo-as umas das outras à procura da razão porque estão ali, como se se sentissem bem a fazer um corpo maior que elas, como que quisessem cooperar.
Aqui, no fundo, sou mais do que eu. Pedaço atómico de um formigueiro que se estende pelos continentes. Os corpos não sabem do interior uns dos outros. Permanecem na ocultação de não saberem de si próprios, daquilo que move a quilha para estibordo. Sonho então que sei o que está aí dentro, no interior que parece conter a razão das coisas e fazê-las inesperadamente mudar de rumo, mesmo que a superfície calma, a planície fleumática, o vagar manso das águas pareça mostrar a paz do instante imediato.
À superfície sonho o interior dos objectos, as hipóteses para as estruturas, o movimento telúrico dos magmas. Na lâmina rasa dos instintos leio os sinais do desconhecido. Não creio que o interior nos queira, de livre vontade, mostrar-se como é, revelar-se, tornar-se exterior. O que não é suportável é a pressão absurda do inconsciente à procura de caminho no acaso dos batimentos cardíacos. Se quisermos, a verdade é isso: o abalo sísmico que diz o que é o fundo das coisas. Todo o fundo é um sonho da mesma forma que a superfície é real. Desvendar é transformar fundos em superfícies, interiores em exteriores, medos em banalidades.
Prólogo