A sério, mesmo, só uma criança a brincar
Quarta-feira, 29 de Março de 2006
Escritor famoso V
Fenomenologia
A morte é fácil mas morre-se a custo. O custo da morte é a soma dos custos fixos com os custos variáveis. Mas morre-se. Masmorra definitiva, a morte, ou liberdade final, não sei. Um dia teremos a morte a custo zero e não custará nada morrer, ainda que não seja uma experiência a repetir, no sentido individualista do termo. Ser social, o homem, como os outros animais e as plantas, morre sozinho.
Morrer a custo zero poderia ser um objectivo político. Tipo utilizador-pagador. A terra a quem a trabalha. A terra a quem a alimenta. Facilmente passamos de uma morte a custo zero para uma morte rentável, desde que encaremos a coisa numa perspectiva neoliberal e deixemos a porta aberta à livre iniciativa. Ninguém tem dúvidas que mesmo nas sociedades mais colectivistas a morte é actividade do sector privado.
Não é justo, no entanto, dizer que ninguém tem dúvidas. Já não estamos nesse tempo em que outros galos cantariam e o sol brilharia para todos nós. O assunto do momento é a morte e, potencialmente, a custo zero.
Estudos recentes concluíram que a vida tem um preço. Não está cotada na bolsa oficial nem no PSI 20 por razões de operacionalidade, mas tornou-se bastante claro que a vida, medida de todas as coisas, tem um preço. Está, por isso, no mercado e disponível para ofertas de aquisição, públicas e privadas. Por estarem no mercado, as vidas, a vida, a tal, tem um preço que é relativamente elevado para quem não tem pais ricos ou não teve sorte no euro-milhões...
O preço da vida humana, tal como os puros-sangues, é feito a partir do preço base com que sai de fábrica mais os custos de 'marketing' e promoção, que podem multiplicar largamente o preço base como acontece com qualquer produto agrícola ou industrial.
Se houver oportunidade para olhar para uma vida mais de perto, pode verificar-se que na formação do preço base as matérias primas não são muito relevantes, pelo menos para a maioria dos casos. Mais importante é o valor acrescentado, que hoje parece resumir-se à incorporação de tecnologia.
Falei de preços mas queria dizer custos, embora custe muito perceber como o preço é tão diferente do custo. É sempre necessário meter o mercado na história. O que é sempre muito mais fácil do que meter a História no mercado. É o mercado que decide o preço. É o mercado que decide tudo. E é tudo uma questão de percepção. O que interessa é o valor percebido pelo mercado. E o verdadeiro trabalho, o tal lugar da inovação e da criatividade, está em fazer perceber ao mercado a melhor relação custo-benefício. É por isso que a morte é cara apesar de o custo tender para zero.
Prólogo
Quinta-feira, 9 de Março de 2006
Rugosidade
Eu sei que não sei contar histórias. Sei que só falo de acontecimentos em que nada aconteceu. O meu propósito é, quase sempre, que não haja propósito nenhum e espero da maioria das coisas que de facto não existam. Quando pego num assunto, digamos assim, é sempre na perspectiva que o assunto não tenha tema e não se ligue a nada que possa parecer verdade. É uma perspectiva e é uma expectativa. Apesar de, acima de tudo, eu não esperar nada e não ter, por isso, de sentir que perco o meu tempo com estas coisas. Pressinto que o meu pensamento é rugoso. Assim como uma papel amassado. Não digo um papel amassado furiosamente, e por isso de maneira superficial, mas um papel amassado com intenção, com método, com vontade. E um pensamento rugoso, de volume variável e superfície baça, não reflecte, não transmite, não passa, nem no tempo nem no espaço, para além dos limites vagamente definidos do presente. Não se trata de um jogo de palavras. Ou trata-se, na medida em que a tudo se pode dar o título de jogo. Mas só nesse caso, só nessa rugosa acepção. Porque de outra maneira não gosto de jogo. Não por a alguns parecer que durante um jogo acontece alguma coisa. Que não acontece. Nada acontece num jogo. Um dia, com mais tempo, também farei a minha teoria dos jogos. Por agora direi apenas da perplexidade perante o relato de um jogo. Pela fantasmagórica atitude de ouvir com atenção alguém que descreve - eles dizem narra - um jogo. De que é que falam esses narradores? Mas falar disso já seria narrar a narrativa de um jogo, ou descrevê-la, dar-lhe um volume, uma cor, uma intensidade, uma emoção. E no jogo que chega a nós por interposta pessoa, isto é, num jogo em que não jogamos, em que não somos intervenientes, em que somos, como se diz, espectadores ou receptores secundários de narrativas, materializam-se emblemáticas formas de ficção que, como sempre, dão a quem especta a imortal sensação de sentir e viver. E eu não sei contar histórias. Ocasionalmente apercebo-me que acontecem coisas. Mas não as percebo. Não as consigo inscrever numa convergência de rectas e, pelo tempo que as une, parece sempre que há um lugar a mais, uma direcção que falhou, um gesto de indecisão que foi levado a sério. Um dia, talvez depois de fazer a minha teoria dos jogos, hei-de tentar, para me entreter, perceber porque é que o tempo passa como se fosse uma ave migratória, voando sobre nós como se não fizéssemos parte da história. Sei que não é tema que dê para contar uma história. Mas talvez esteja aí o sublime da situação: uma história que não faz parte da história e que por isso não se conta a não ser que possa ser relatada como um jogo em que ninguém joga e todos são espectadores.
Prólogo