A sério, mesmo, só uma criança a brincar
Quinta-feira, 26 de Janeiro de 2006
Brainstorm
Hoje tinha uma proposta para brincarmos. Brincávamos como se fôssemos pessoas crescidas. Eu fingia, tu fingias, nós fingíamos... Eu sei que não é a mesma coisa porque quando eu finjo que finjo, é como se já fosse eu outra vez e tu, quando finges, e finges muito bem, ficas outra pessoa que, se finge, ainda fica mais outra pessoa. O meu fingimento é binário. Oscilo entre dois lugares opostos e discretos. Tu, no teu fingimento, multiplicas a tua multiplicação por estados que parecem não acabar e me deixam perplexo na singularidade dos meus dois lugares comuns. Mas também podíamos fingir que ainda éramos crianças e fingir então que éramos adultos, e talvez assim a brincadeira já resultasse. Era mais fácil. Não tínhamos que inventar personagens complicadas, porque como crianças não tínhamos que saber exactamente como eram os adultos e, por isso, não tínhamos que complicar. Agora íamos ser adultos que brincavam a ser crianças para então brincarem de adultos que tinham filhos crianças e as compreendiam por serem como elas, embora não fossem como elas a não ser porque fingiam que eram adultos. Não. Não digas que é complicado. Tu às vezes finges tão bem que és criança. Outras finges que és adulto, outras que és velho. Sabes fingir todas essas idades e sair a correr delas como se fossem tuas e as não quisesses. Agora não era suposto que chorasses. Não sei o que finges quando choras. Sabes que esse teu fingimento incomoda. Estás mesmo a sentir? E quem é que está a sentir? És a criança ou já és o adulto que a criança está a fingir que é? Não te percebo. Queres brincar ou não? Tínhamos combinado - ontem lembras-te? - que hoje brincaríamos. Chegávamos do trabalho e brincaríamos. Mas depois tu telefonaste e disseste que preferias passar o dia a brincar em vez de ir trabalhar. Embora para ti o trabalho seja uma brincadeira. Nem percebo se estavas a fingir quando me telefonaste. Nem sei quem eras quando me telefonaste. Eu confesso que hoje não me apetecia brincar. Fingi que me apetecia para não te desagradar. Mas agora percebo que a ti também não te apetecia. Também fingiste. Então afinal estamos aqui os dois a fingir que fingimos que queremos brincar. E eu não sei se o teu choro é fingido ou se finges que não é um choro fingido. Eu finjo, tu finges, nós fingimos... Não. Agora não sei como voltar a pegar em mim e ser eu. Preciso de algum tempo para pensar em quem não é a personagem. Suponho que há alguém aqui que não é uma personagem. E se houver hei-de descobri-la.

Prólogo


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Terça-feira, 17 de Janeiro de 2006
Efeitos
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(De um desafio de Palavras em Linha)

Estavam sentados lado a lado e era Verão. No Outono sentavam-se frente a frente e no Inverno costas com costas. Na Primavera não se sentavam. Andavam pelas bermas dos passeios e ora num pé ora noutro, iam gastando a alegria em passos de dança e variações sobre dois corpos.

Estavam sentados lado a lado porque era Verão. Não por causa dos excessos da estação, do calor , da luz, do aroma, da indolência. Por uma razão habitual. Por uma razão nenhuma. Porque assim olhavam na mesma direcção e é provável, deve mesmo estar demonstrado, por algum monstro, que no Verão os dois olham para a mesma imagem. Propensão genética, impulso divino, força astral, tradição, o escudo da sombra, a boca que fala e o ouvido que ouve.

Estavam sentados lado a lado porque era Verão. Não sei que Verão. Não sei o que verão daquele lugar sentado que é quase sempre o lugar da espera. Mas estavam sentados lado a lado. Quando, no Outono se sentavam frente a frente era para se olharem um ao outro, fixamente, deliberadamente à procura do mistério. Porque há no Outono de cada um um mistério que é mistério para o próprio e revelação para o outro. No Inverno, costas com costas, olhavam para sentidos opostos mas os sentidos libertos da pressão omnipotente do olhar, sentiam com mais intensidade e escorraçavam o frio que penetrava ameaçador pela frincha da porta.

Estavam sentados lado a lado e era Verão. Poderia ter sido ao contrário, poderia ter sido de muitas maneiras diferentes. Mas o Verão era depois da Primavera, depois dos saltos pueris que os faziam dispensar os assentos e em que o alvoroço que brotava da terra parecia chamar às coisas alegria.

Estavam sentados lado a lado e era Verão. Era por estarem sentados lado a lado que era Verão.

Prólogo



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Domingo, 1 de Janeiro de 2006
Morra o d'antes, morra! Pim!
Agora que chegou ao fim o fim do fim do ano e que o fim do fim do princípio do ano também se aproxima, é a altura certa para tomar a decisão de adiar a tomada de decisões importantes. Por princípio nunca começo as coisas pelo princípio e nesta altura em que, digamos assim, o campeonato já vai a meio, é um risco arriscar começar o que quer que seja. Partamos, portanto, da elementar verdade de que aquilo que não for começado não corre o risco de não ser terminado e sobre isso construamos uma nova ordem mundial. Cada decisão que tomamos é errada. Garantidamente errada. Mais tarde ou mais cedo. Mesmo assim, por inerência de uma certa inércia que terá vindo do início dos tempos - uma evidente decisão errada - gerou-se uma necessidade incontrolável de tomar decisões, gerando com elas novas necessidades de tomar decisões e assim sucessivamente. Há, nitidamente, uma grande dificuldade em a realidade ter verosimilhança. Suponho que é um problema que ocorre a qualquer prosador e ainda mais ao prosador que tenha a veleidade de - por razões certamente inconfessáveis - querer ser lido. Mas para a realidade, que em tempos teve, pelo menos por inerência de cargo, a responsabilidade de ser autêntica, a falta de verosimilhança impede aquilo que se chama a realização de um contrato com o leitor. Por todas estas razões estou à espera de um dia destes, em que a conjugação dos astros, dos asteróides, das luas, dos cometas e dos outros objectos celestes, seja propícia, tomar a decisão de deixar de ler a realidade, saltar as linhas e as páginas em que for evidente o excesso de imaginação deslocada do contexto, ignorar os textos obtidos por 'copy & paste', ignorar os textos gerados a partir da máquinas electrónicas de repetição ou de geração aleatória que passam por criativos, indignar-me com novidades trazidas directamente do baú do morto. Ontem ouvi outra vez o Dantas do Almada. Morra o Dantas, morra! Pim! Em miúdo, não sabendo quem era o Júlio Dantas, parecia-me que o Almada dizia: Morra o d'antes, morra! Pim! Para este ano prevê-se o regresso do Dantas e do d'antes. Pim!

Prólogo


publicado por prólogo às 22:51
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