A sério, mesmo, só uma criança a brincar
Sexta-feira, 28 de Outubro de 2005
Tristamante
Porque estás triste? Não te dei já o sumo de laranja que querias? A anja é a fêmea do anjo sem mas. Mas como o anjo não tem sexo, que é quase o mesmo que dizer que não tem género, a anja também não. Não tem a anja sexo nem lugar no dicionário porque o dicionário tem pouco lugar para as fêmeas das coisas, das palavras e dos factos. Factos como por exemplo o exemplo que é sempre macho e serve para seguir, ou como afecto que afecta mas nunca deixa de ser ele. Ele segue em frente com o modelo de dar à rebeldia do cabelo a forma do desalinho feito de linhas que se sobrepõem e revoltam ou não. Não tendo a anja sexo, nem género, nem abrigo literário, fica ao relento, que volta sempre mais lento, e na falta de um género torna-se genérica com as marcas tatuadas nas asas migratórias. Migratórias são as aves que vão e voltam num ritmo rotineiro como é próprio dos ritmos e das rotinas, dos consolos e dos desconhecidos momentos em que já se não é. É assim a repetição da morte que o ser amargo quis intermitente e que talvez seja mais tarde ou mais cedo o lugar onde se regressa. Porque estás triste? Não te dei já uso modelar, anja? Queres que ria? Regressa ao regaço do conforto dormente, do sorriso desfeito, no peito, no efeito, na letra redonda entrecortada com o vírus raquítico da indiferença. Indiferença matemática. Matemática feminina que se conta em contas de terço ou num terço das contas que em cada conto se fazem para reparar os gestos em falso e os falsos gestos. Gestos gesticulados pela embriaguês dos sucos secretos, das seivas que escalam as montanhas do desejo e regressam incólumes à plana docilidade. Docilidade, anja! Anja, joga hoje, e haja o que houver, age. Age saindo de debaixo da asa, ou dando à asa a largura quase toda do momento e da inércia. Inércia dos sonhos e da razão de olhar apenas e não dar a volta ao sentido da falta de sentido e ao desarranjo laminar das causas. Porque estás triste? Está estragado? Ele arranja consumo e dor.

Prólogo


publicado por prólogo às 23:27
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Quinta-feira, 20 de Outubro de 2005
Desgostos
Quando não sabemos porque gostamos de uma determinada coisa, seja sopa, som ou garatujas, dizemos que os gostos não se discutem. Porém, estranhamente, é saboroso discutir os gostos. Suponho que poucas coisas mais fazemos na vida do que discutir os gostos. Nunca gostei da Ágata porque na altura em que poderia ter gostado da Ágata, ainda não era a Ágata que se ouvia mas as outras imensas Ágatas que havia. Por razões bastante razoáveis, e à medida que aprendia a ler coisas mais complexas que Os Cinco, e a comer coisas mais sedutoras que pirolitos, também aprendi a exigir sons mais musicais do que ruídos. Poderia, evidentemente, ter permanecido na minha colecção de Ágatas, porque todos os dias aparece uma Ágata nova, com renovada diferença e igual musicalidade. Até poderia explicar porque é que não fiquei com as Ágatas e passei a outras músicas. Mas o assunto não é esse. O assunto é a satisfação e o êxtase. É complicado, muito complicado mesmo, comparar êxtases. Não digo comparar o meu êxtase de hoje com o êxtase de ontem. Refiro-me a comparar o meu êxtase com o êxtase de outra pessoa. Sempre que tento fazer isso faltam-me dados. Nestes casos prefiro dizer que êxtases não se discutem e passar à frente. Já a satisfação é diferente. A satisfação discute-se. Muito satisfeito, pouco satisfeito, nada satisfeito. Tudo isto se aplica à música, ao chouriço ou à literatura. Há quem se satisfaça com pouco. Há quem viva em permanente insatisfação. Há quem se satisfaça principalmente com a insatisfação dos outros. Há até quem, ao longo da vida, por razões pouco razoáveis, vá sendo cada vez mais exigente naquilo que o satisfaz. Por mim, que me satisfaço com pouco, gostaria de me satisfazer com cada vez menos - era mais fácil - mas fico cada vez mais insatisfeito com cada vez mais coisas. É verdade! Ando a tornar-me exigente. E isto é um problema. Porque os êxtases tornam-se um problema. Os êxtases são cada vez menos. É este o preço a pagar pela insatisfação. E porquê esta insatisfação? Porque há poucos que são demasiado poucos para aceitarmos que haja quem se satisfaça com eles. Porque não fico satisfeito ao ver tanta gente satisfeita com tão pouco. Porque lamento que as pessoas não sejam mais exigentes do que são, consigo e com os outros. Porque basta a facilidade para satisfazer. Porque sabendo pouco ou nada há mais hipóteses de satisfação. Tudo isto é um devaneio barroco. Nada disto tem importância. O que era muito importante e construtivo era que se percebesse que não gostar do que uma pessoa gosta não implica não gostar dela. Só assim que se conseguem êxtases a discutir gostos.

(amm)


publicado por prólogo às 20:13
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Terça-feira, 18 de Outubro de 2005
Circunstâncias especiais
Há que ter em conta as circunstâncias. Porque são importantes. Em cada circunstância há, digamos, circunstâncias que a fazem única. Mesmo que sejamos os mesmos e as circunstâncias sejam as mesmas, há sempre uma circunstância que faz a diferença. Pode dizer-se, digo eu, que em cada circunstância temos oportunidade de encontrar circunstâncias que a tornam diferente. Mesmo que haja circunstâncias que se repetem.
Em qualquer circunstância preocupo-me em ser coerente. Posso dizer que espero que qualquer circunstância seja igual a outra circunstância qualquer, para mostrar que sou sempre o mesmo, mesmo que as circunstâncias sejam diferentes. Mas sei que as circunstâncias não são as mesmas. E é essa circunstância que me preocupa. Porque se eu sou o mesmo em qualquer circunstância então eu não sou o mesmo em cada circunstância. Se eu fosse o mesmo numa circunstância qualquer haveria de, dependendo da circunstância não ser o mesmo.
Vamos supor, por absurdo, que em circunstâncias idênticas o meu comportamento tinha diferenças assinaláveis. Isso quereria dizer que nesse tipo de circunstâncias eu estaria a ser eu umas vezes e a ser outro outras vezes. Porque se as circunstâncias são as mesmas, então há alguma coisa que muda que não as circunstâncias, o que não faz sentido, como queríamos demonstrar.
Podemos então dizer que desde que se repitam as circunstâncias, o comportamento é único. Mas, se se der o caso de haver circunstâncias que mudem, então estaríamos à espera que os comportamentos fossem diferentes em cada circunstância.
E, de facto, é isso que acontece quando as pessoas não são coerentes. Mas, se se dá o caso de se ser coerente, então mesmo em circunstâncias diferenciadas o comportamento há-de ser o mesmo da circunstância anterior. Por outro lado, um comportamento que seja visto como coerente em todas as circunstâncias, mesmo nas circunstâncias mais extremas - o que não é forçoso - será sinal de uma grande insensibilidade às circunstâncias o que, circunstancialmente, me parece, digamos assim, pouco humano.
Não queria chegar a esta conclusão. Porque em nenhuma circunstância me ocorreria pensar que a coerência não é uma coisa boa em qualquer circunstância e ousar opô-la à sensibilidade. Pode dar-se o caso de em determinadas circunstâncias a sensibilidade não ser uma coisa boa mas por agora prefiro abandonar temporariamente, e nesta circunstância, a coerência.

prólogo


publicado por prólogo às 19:42
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Segunda-feira, 10 de Outubro de 2005
O coito do escritor famoso
Quando andava à procura da forma perfeita, encontrei a esfera. Sei que não é universal, que haverá quem goste mais do cubo ou do fantástico tetraedro, mas eu prefiro uma coisa sem vértices nem arestas, elementar o suficiente para parecer mais do que é e onde a proximidade do toque é sempre pontual.
Talvez por isso, na infância, passasse o meu tempo a esquadrinhar obsessivamente o arcaico globo terrestre que ainda está cá em casa. Incomodava-me saber da enorme sorte que me calhara de, dado que estava sempre numa óbvia vertical, o resto da humanidade viver numa estranha e incómoda obliquidade, para não falar nos antípodas que permaneciam eternamente de pernas para o ar.
Claro que desconfiava que a história estava mal contada. Habituara-me a que, tal como com o sexo, os adultos nos escondiam sempre algumas partes, suponho que com a pedagógica intenção de nos manter interessados em continuar vivos.
Entre as histórias mal contadas e a verticalidade da condição humana, a casa da infância ficou marcada no globo como o lugar em que tem que se olhar para cima para ver o céu.
É por isso que aqui volto quando necessito de alinhar de novo a bússola dos sentimentos. Nada explicável, eu sei. Apenas sensações, vibrações mentais que decorrem de comparar as memórias com os lugares, numa espécie de passatempo do tipo descubra as diferenças.
Os lugares são sempre outros. Aqui soube, entre outros, de Jesus Cristo e de D. Quixote. Não sei qual deles chegou primeiro. Não sei quem é o real que se tornou ficção nem quem é a personagem que se tornou concreta. Que mais faz? Que é a história senão essa capacidade de tirar à ficção os direitos de autor? Ou talvez o contrário...
O que me lembro tem pouco a ver com o que vejo. Os saltos que dava eram muito maiores que a altura da janela. Mas a janela era muito maior. A casa encolheu, os sons agora são menos silenciosos e os cães já não ladram.
Gosto de ter este lugar vertical de regresso. O ponto de partida que torna de novo a meta. O coito onde se volta no jogo das escondidas.

(amm)


publicado por prólogo às 15:13
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