A sério, mesmo, só uma criança a brincar
Quarta-feira, 17 de Agosto de 2005
Prólogo a Helena
Na prosa que eu tinha intenção de escrever acerca de Helena iria constar um instante, demasiado curto mas intenso, em que me perguntou se sabia de uma maneira simples de chegar ao céu. Ter-lhe-ei dito que não sabia, mas deveria haver um processo metódico e racional em que, com tempo suficiente e recursos adequados, se poderia fazê-lo.
Antes de tudo falamos daquilo que não sabemos. Explicamos com todas as letras o desconhecido, damos o nome às coisas que não existem e fazemos disso uma boa ocasião para parecer que nos parecemos com alguma coisa. Não fosse isso a vida e pareceria dramático.
Nessa altura, porque foi há muito tempo, as palavras ainda não eram as de hoje mas já contavam histórias impossíveis e verosímeis juntamente com outras em que os números substituíam, com vantagem, a argumentação e a fantasia.
Há sempre alguma injustiça nas palavras, as que são como pedras arremessadas com ódio e as que são pedras deixadas cair como se fossem palavras sujeitas à gravidade das massas imensas, pedras no rim torcendo o corpo incompetente para se regular e irregular na função de se ler a si próprio e voltar de novo às palavras que inventou.
O que me atraiu a mim e a Helena ao baloiço livre do intervalo das deduções e que eu tinha intenção de escrever para assim escrever a fama que vem de longe, do ponto mais alto a que o impulso combinado dos pés e do sonho leva o corpo; o que nos atraiu na força natural que atrai os corpos para as suas proximidades menos evidentes foi, provavelmente, o magnetismo do ferro igual que nos circula nas veias.
No texto que eu tinha intenção de escrever acerca de Helena e de mim e das coisas menos comuns que aproximam os afectos iria falar da nossa surpresa quando os nossos pais foram chamados à escola por causa das nossas destemidas ausências no parque. As nossas mães eram duas mas o pai era só um...

Prólogo


publicado por prólogo às 23:55
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Terça-feira, 2 de Agosto de 2005
Apara raios
Olha se eu agora aparecesse aqui e fosse outro se não se soubesse que era eu e portanto se não pudesse identificar a origem desta fala a não ser por suspeita ou por desejo de suspeita ou ainda melhor por ser afinal outro mas não o outro que sou e sim um outro que não sou afinal eu.
Dos factos não sobraria nenhum gesto a não ser a memória difusa do que terá sido mas não tendo sido não se revelou e não se tendo revelado só resta a certa incerteza de não ter sido mais nada do que um movimento perdido.
Olha se eu agora não fosse eu nem fosse nada e não quisesse perder o meu tempo a perder e tivesse por isso que saltar de linha em linha com a ligeireza de um crocodilo no seu rio predilecto à procura do rasto sanguíneo das lágrimas que se evaporaram nitidamente na curva mineral do dorso da corrente.
Vida e água serão a mesma coisa quando se vertem avidamente sobre a terra seca do estio prolongado das ideias e dos sentidos e das ilusões.
Olha se eu agora batesse à porta e não fosse eu mas outro rosto eventualmente desconhecido como é sempre o rosto que surge no lugar do rosto que se espera e dá lugar a outro e que por isso e por outras coisas acaba por ser melhor ou pior recebido conforme as sensações que se tenham acumulado no momento e tenha sido adicionada a negação de todos os sentidos e de todas as formas.
Há em cada esquina uma surpresa que poderemos receber ou não mas que estando lá nos espera e nos soletra por gestos horrivelmente subtis modelos novos de encarar o descer da luz sobre os actos mais banais e diz com a repetição própria de tudo o que é vivo que a surpresa que há em cada esquina não é nada comparada com a surpresa que às vezes vem de dentro e leva o pensamento para as esquinas da memória que não tem objecto nem vontade de ser nuvem nem sonho nem pedra nem fome nem desejo.
Olha se eu agora dissimulado em paisagens etílicas parecesse outro que não sou ou pelas mesmas razões parecesse o outro que sou e se dissolve em solventes universais da memória e que dos gestos habituais me movesse para saltos mortais de defunto que no fundo sou de todas as ilusões ou pelo menos daquelas que davam sustentação ao gesto arbitrário de me querer morto antes da hora e não agora e nada nada nada.
O meu sonho era ser um pára-raios colocado no mais alto dos edifícios da terra à espera da carícia eléctrica da próxima nuvem cinzenta e aterradora que se desfizesse em lágrimas perante o ar seguro da minha alegria e esta força interior desconhecida e oculta que me liga directamente à terra de onde nasce todo o sentido do amor do humor e do fogo.

amm(582)


publicado por prólogo às 10:28
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