A sério, mesmo, só uma criança a brincar
Terça-feira, 4 de Dezembro de 2007
Certeza

Tinha uma coisa para te dizer mas não sabia se era verdade e por isso não te disse. Só te posso dizer aquilo que tenho a certeza que é mentira. Na verdade, quando te digo isto, estou a tentar não violar o meu próprio princípio. Mas é difícil. Ao contrário do que é comum, calha-me ter escrúpulos de alguma vez te dizer alguma coisa que possa ser confusa e tomada como falsa quando é precisamente isso que te quero dizer. Por princípio aquilo que digo é verdade. E se o digo a ti é duplamente verdade. Mas quando o digo, a minha intenção é mentir-te para que tomes por verdade aquilo que eu te digo. Se não acreditasses no que eu digo, por uma qualquer razão, mesmo que absurda, eu não teria qualquer hipótese de te mentir. É fundamental, por isso, que eu te diga sempre a verdade para que acredites sempre no que eu digo, ainda que o que eu diga seja sempre mentira. E como é sempre mentira aquilo que eu digo, embora tu tomes toda a minha mentira como uma verdade, não preciso de me esforçar para mentir tal como ninguém o faz sempre que mente, mesmo que convencido que diz a verdade ao dizer uma mentira que lhe contaram.

Seria impossível conversarmos se eu não dissesse sempre a verdade. O que ouves dos meus lábios, ainda que não ouças tudo que eu digo, é sempre a verdade que, de uma maneira ou de outra, estás à espera de ouvir. E isso faz com que seja relativamente fácil mentir. Ao mentir, mesmo que diga a verdade para tu ouvires, estou a conformar-me a ser tão verdadeiro quanto possível. O meu discurso está todo entregue à emissão de uma verdade que te satisfaça e é por isso absolutamente verdadeiro no seu conteúdo totalmente falso. São as minhas palavras que não são capazes de te mentir. Ouves o que é a verdade e é sobre essa verdade que eu construo a verdade que me interessa e que, bem vistas as coisas, é também a verdade que te interessa a ti.

Ninguém, tal como tu, está hoje disponível para chamar verdade ao que, numa perspectiva muito livre, for efectivamente a verdade. Qualquer palavra que eu diga, mesmo estas em que tento explicar o inexplicável, é a verdade efectiva que estás disposta a ouvir, ainda que a verdade efectiva - a que não estás disposta a ouvir (nem tu nem eu) - seja outra que eu não sou capaz de dizer agora. Isto apesar de não haver qualquer dúvida de que aquilo que eu digo, e especialmente do que te digo a ti, ser a pura verdade. Em caso algum sou capaz de dizer alguma coisas que não seja absolutamente verdadeira. E isso mostra como tudo o que digo é mentira. É mentira tal como é mentira o que tu me dizes, mesmo que eu seja capaz de pôr as mãos no fogo pela verdade das tuas palavras. Porque se há algum lado em que a mentira é permanente, a tal ponto que nunca se duvida, tu és o seu oráculo e sacerdotisa. Não há momento em que eu consiga pôr em causa a absoluta verdade das tuas mentiras e todo o meu esforço é amador quando minto até à exaustão para te dizer a verdade.

Muitas vezes penso, mesmo não pensando muitas vezes, que o que te posso dizer que não seja verdade já tu conheces há muito tempo. Acreditas, por isso, em cada uma das palavras que mentindo sou capaz de te dizer, sem denunciar o nervosismo de por algum lapso te poder dizer, sem querer, a verdade. Não sei se minto quando te digo o que penso sobre ti, porque quando o digo é de tal maneira verdade que eu próprio fica na dúvida sobre a verdade do que te digo. Estou convicto de que o que te digo é mentira e por isso o digo com o à vontade de quem diz a verdade, mesmo sabendo que está a mentir. É tão falso que eu minta como é falso que diga a verdade, e também é completamente falso o contrário. Mas é sempre verdade que eu minto, mesmo que sempre que eu minta seja verdadeiro.

Na verdade não sei se é bom ou mau ter-nos Deus dado este incontornável jeito para mentir.


Prólogo

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publicado por prólogo às 23:49
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2 comentários:
De maria c. a 5 de Dezembro de 2007 às 17:04
Querido António, mestre dos paradoxos! Mais um brilhante desenvolvimento à volta da dicotomia verdade/mentira e das suas implicações nas relações que estabelecemos com o(s) outro(s). Existe um paradoxo de Parménides, que por certo conheces, que diz: "A frase seguinte é falsa. A frase anterior é verdadeira". O contrário também é possível, como nos paradoxos em geral: "A frase seguinte é verdadeira. A frase anterior é falsa." O meu espírito sente-se recriado, renovado, re-lavado, de cada vez que lê um escrito teu.
Beijos.
maria


De mafalda coimbra a 31 de Dezembro de 2007 às 03:12
Hoje passei mesmo só para te deixar os votos de um excelente 2008.
Um beijo.


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