Na falta de assunto fala-se do tempo.
Na falta de tempo fala-se de pressa.
Na falta de pressa fala-se de vagar.
Na falta de vagar fala-se de ocupação.
Na falta de ocupação fala-se de emprego.
Na falta de emprego fala-se de trabalho.
Na falta de trabalho fala-se de fome.
Na falta de fome fala-se de apetite.
Na falta de apetite fala-se de comida.
Na falta de comida fala-se de governo.
Na falta de governo fala-se de selva.
Na falta de selva fala-se de jardim.
Na falta de jardim fala-se de betão.
Na falta de betão fala-se de economia.
Na falta de economia fala-se de desperdício.
Na falta de desperdício fala-se de poupança.
Na falta de poupança fala-se de empréstimos.
Na falta de empréstimos fala-se de bancos.
Na falta de bancos fala-se de cansaço.
Na falta de cansaço fala-se de energia.
Na falta de energia fala-se de petróleo.
Na falta de petróleo fala-se do álcool.
Na falta de álcool fala-se de sobriedade.
Na falta de sobriedade fala-se de política.
Na falta de política fala-se de religião.
Na falta de religião fala-se de futebol.
Na falta de futebol fala-se de fado.
Na falta de fado fala-se de sexo.
Na falta de sexo fala-se de vinho.
Na falta de vinho fala-se de sangue.
Na falta de sangue fala-se de saúde.
Na falta de saúde fala-se de Deus.
Na falta de Deus fala-se de razão.
Na falta de razão fala-se de emoção.
Na falta de emoção fala-se de gelo.
Na falta de gelo fala-se de calor.
Na falta de calor fala-se de afecto.
Na falta de afecto fala-se de amigos.
Na falta de amigos fala-se de influências.
Na falta de influências fala-se de democracia.
Na falta de democracia fala-se de igualdade.
Na falta de igualdade fala-se de dinheiro.
Na falta de dinheiro fala-se de lucros.
Na falta de lucros fala-se de guerra.
Na falta de guerra fala-se de paz.
Na falta de paz fala-se de pressão.
Na falta de pressão fala-se de leveza.
Na falta de leveza fala-se de peso.
Na falta de peso fala-se de gravidade.
Na falta de gravidade fala-se de simplicidade.
Na falta de simplicidade fala-se de grandeza.
Na falta de grandeza fala-se de rastos.
Na falta de rastos fala-se da suspeita.
Na falta de suspeita fala-se de hipóteses.
Na falta de hipóteses fala-se de certeza.
Na falta de certeza fala-se de dúvida.
Na falta de dúvida fala-se de crença.
Na falta de crença fala-se de acaso.
Na falta de acaso fala-se de determinismo.
Na falta de determinismo fala-se de probabilidade.
Na falta de probabilidade fala-se de possibilidade.
Na falta de possibilidade fala-se de sonhos.
Na falta de sonhos fala-se de sono.
Na falta de sono fala-se de amor.
Na falta de amor fala-se de solidão.
Na falta de solidão fala-se de confusão.
Na falta de confusão fala-se de ordem.
Na falta de ordem fala-se de decisão.
Na falta de decisão fala-se de hesitação.
Na falta de hesitação fala-se de intuição.
Na falta de intuição fala-se de sorte.
Na falta de sorte fala-se de jogo.
Na falta de jogo fala-se de penalidade.
Na falta de penalidade fala-se da justiça.
Na falta de justiça fala-se de poder.
Na falta de poder fala-se de segurança.
Na falta de segurança fala-se de medo.
Na falta de medo fala-se de coragem.
Na falta de coragem fala-se de inércia.
Na falta de inércia fala-se de liberdade.
Na falta de liberdade fala-se de censura.
Na falta de censura fala-se de tudo.
Tinha uma coisa para te dizer mas não sabia se era verdade e por isso não te disse. Só te posso dizer aquilo que tenho a certeza que é mentira. Na verdade, quando te digo isto, estou a tentar não violar o meu próprio princípio. Mas é difícil. Ao contrário do que é comum, calha-me ter escrúpulos de alguma vez te dizer alguma coisa que possa ser confusa e tomada como falsa quando é precisamente isso que te quero dizer. Por princípio aquilo que digo é verdade. E se o digo a ti é duplamente verdade. Mas quando o digo, a minha intenção é mentir-te para que tomes por verdade aquilo que eu te digo. Se não acreditasses no que eu digo, por uma qualquer razão, mesmo que absurda, eu não teria qualquer hipótese de te mentir. É fundamental, por isso, que eu te diga sempre a verdade para que acredites sempre no que eu digo, ainda que o que eu diga seja sempre mentira. E como é sempre mentira aquilo que eu digo, embora tu tomes toda a minha mentira como uma verdade, não preciso de me esforçar para mentir tal como ninguém o faz sempre que mente, mesmo que convencido que diz a verdade ao dizer uma mentira que lhe contaram.
Seria impossível conversarmos se eu não dissesse sempre a verdade. O que ouves dos meus lábios, ainda que não ouças tudo que eu digo, é sempre a verdade que, de uma maneira ou de outra, estás à espera de ouvir. E isso faz com que seja relativamente fácil mentir. Ao mentir, mesmo que diga a verdade para tu ouvires, estou a conformar-me a ser tão verdadeiro quanto possível. O meu discurso está todo entregue à emissão de uma verdade que te satisfaça e é por isso absolutamente verdadeiro no seu conteúdo totalmente falso. São as minhas palavras que não são capazes de te mentir. Ouves o que é a verdade e é sobre essa verdade que eu construo a verdade que me interessa e que, bem vistas as coisas, é também a verdade que te interessa a ti.
Ninguém, tal como tu, está hoje disponível para chamar verdade ao que, numa perspectiva muito livre, for efectivamente a verdade. Qualquer palavra que eu diga, mesmo estas em que tento explicar o inexplicável, é a verdade efectiva que estás disposta a ouvir, ainda que a verdade efectiva - a que não estás disposta a ouvir (nem tu nem eu) - seja outra que eu não sou capaz de dizer agora. Isto apesar de não haver qualquer dúvida de que aquilo que eu digo, e especialmente do que te digo a ti, ser a pura verdade. Em caso algum sou capaz de dizer alguma coisas que não seja absolutamente verdadeira. E isso mostra como tudo o que digo é mentira. É mentira tal como é mentira o que tu me dizes, mesmo que eu seja capaz de pôr as mãos no fogo pela verdade das tuas palavras. Porque se há algum lado em que a mentira é permanente, a tal ponto que nunca se duvida, tu és o seu oráculo e sacerdotisa. Não há momento em que eu consiga pôr em causa a absoluta verdade das tuas mentiras e todo o meu esforço é amador quando minto até à exaustão para te dizer a verdade.
Muitas vezes penso, mesmo não pensando muitas vezes, que o que te posso dizer que não seja verdade já tu conheces há muito tempo. Acreditas, por isso, em cada uma das palavras que mentindo sou capaz de te dizer, sem denunciar o nervosismo de por algum lapso te poder dizer, sem querer, a verdade. Não sei se minto quando te digo o que penso sobre ti, porque quando o digo é de tal maneira verdade que eu próprio fica na dúvida sobre a verdade do que te digo. Estou convicto de que o que te digo é mentira e por isso o digo com o à vontade de quem diz a verdade, mesmo sabendo que está a mentir. É tão falso que eu minta como é falso que diga a verdade, e também é completamente falso o contrário. Mas é sempre verdade que eu minto, mesmo que sempre que eu minta seja verdadeiro.
Na verdade não sei se é bom ou mau ter-nos Deus dado este incontornável jeito para mentir.
Fico à espera que o tempo passe, e o tempo passa mas não passa a vontade que eu tenho que o tempo passe. Passa o tempo mas não passa o que eu quero que não passe, mesmo que fique à espera que o tempo passe para que passe, ao mesmo tempo que o tempo, o que eu não quero que passe. Por outro lado quero que passe o que não passa mas não dou um passo para que o que não passa passe. Neste caso, ao contrário de outros em que esperei que o tempo passasse para que passasse também o que eu queria que passasse com o tempo, eu espero que passe o tempo que faz passar ao mesmo tempo as coisas que se quer que passem, mas espero ao mesmo tempo que o tempo passa que não passe o que espero que passe mas não quero que passe. Espero, portanto, apenas que o tempo passe, sem que passe mais do que o tempo e não passando aquilo que tem que passar enquanto o tempo passa, é como se o tempo não passasse e se ficasse à espera de um tempo que não passa. Passo a passo, passo o tempo que não passa, embora eu saiba que passa porque passam algumas coisas que costumam passar enquanto o tempo passa e enquanto passam as coisas que costumam passar com o tempo é seguro que no mesmo passo passa também o tempo que faz com que as coisas passem. O que não passa é apenas uma coisa que eu quero que não passe porque não sei como passaria se essa coisa passasse e que passo poderia dar se tendo passado contra a minha vontade ainda teria vontade para esperar que o tempo passasse. O passo que não dou é um passo interrompido à espera que o tempo passe enquanto espero que não passe essa coisa que passa com o tempo mas eu não quero que passe enquanto espero que o tempo passe. Estou, portanto, parado à espera, dando os passos que o tempo dá, sem sair do lugar da coisa cujo passado me prende o passo por não saber de razão nenhuma para dar um passo de um passado que eu não queria passado mas que passasse como eu passo, em passo certo com o tempo que vai passando. Por mim não passará a passado o passado que tendo passado eu não quero que seja apenas passado. E não querendo eu que passe, mesmo que o tempo passe a dizer-me que passou, e passem outras coisas que o tempo passa para passado, não passarão no tempo que passa por mim ou então passará o tempo a não passar por mim quando tiver feito passado das coisas que eu não deixo que passem.
O meu fundamento é ser capaz do impossível. Passar a correr sobre o banal e colar-me com ambiguidades a incertezas absolutas, contabilidades de números primos afastados pela força do vento moderado a norte do sistema monte junto à estrela cadente.
Todas as manhãs acontece este arrefecer do tempo que resta num clima de suspeitas do costume milenar. Acordo com o real um texto de princípios activos combinados com insatisfação pelas coisas difíceis que fazem a vida parecer-se com uma viagem ao centro da terra prometida por um político activo como um detergente concentrado pelo marketing.
O guru diz que nenhum gesto é impuro e garante que já a seguir o número será perfeito, ajustado ao valor da inflação do desejo e ponderado pelo peso insignificante de um sonho de claras em castelo de mouras encantadas. Jura o guru que não jura por ser conhecedor do futuro e temer acima de tudo o passado com a sua história mal contada pelo sim pelo não pelo talvez não se consiga conhecer para além do primeiro momento em que ainda todo o segredo é pouco.
Não é justo que se queime um destino com um fio de navalha a pena do tigre que já moribundo às riscas desarmadas, inscrito na paisagem apagada pela morte inesperada de Deus todo ponderado em libras de ouro negro de fome e peste ratada pela misteriosa ganância dos dedos que guardam no bolso barragens cheias de suor e sangue azul de febre e cansaço infame. O medo caiu como chuva ácida sobre a multidão aconchegada à sombra dos direitos tortuosamente conseguidos no papel de embrulho da revolução cravada de hipocrisias e insistências em objectivos sem gente nem sentido, trocando tudo por um ai pode ou não pode comprar mais uma lembrança deste dia, desta hora, deste segundo que já cá não está e precisa de ficar marcado na memória imediata do navio mercante que vai à china buscar a mercadoria que compra nadas vazios e alarga alegremente a curva de gauss espalhando em todos os graus o sismo pragmático do contentamento por estar vivo e produzir nem que seja mais um momento branco no alvo do silêncio.
Nem extenso nem profundo, para não assombrar a Obra. Limitado e emprestado, formal como uma apresentação de prestígio. Páginas para saltar a correr, na pressa de chegar ao âmago da questão. Ah, e aceitar as coisas como elas são: opinião amiga, pretexto para um texto que será muro de protecção.
Mas não. Pode acreditar-se nisto, como em qualquer outra coisa, que não se perturbará o acaso do mundo e a sua enviesada memória. Umas vezes maravilha, outras dislate técnico.
É falso que tudo seja igual e é verdade que estamos aqui com a estranha função de detectar as diferenças. E se possível desfrutar delas. Ou aniquilá-las.
Nas brumas de Burma ocorrem cenas e desejos que nos aniquilam pela sua dignidade. Nos momentos em o mal é claro, e antes que as aparências se sobreponham e as máquinas devorem a verdade, a revolta absorve-nos pelo seu ar de essência.
Um mundo feito à medida de nada, condicionado pelas condições iniciais, reduzido aos mínimos comuns e incapaz de endireitas as costas. Factos em vez de ética. Deve ser melhor assim...
No princípio era o verbo. Aceito. Por uma questão de princípio. Analogia por analogia, fico com a que me sabe melhor. O universo na sua vastidão a começar num ponto, num pequeno zero cheio de potencial. E a ficar aí eternamente em vez de se dispersar a criar um tempo que se perde. Um bom princípio. Lá onde todas as hipóteses ainda se vislumbram ou, mesmo que não se imaginem, admitem o inimaginável. Potencial. Acumulação de ética sem factos.
Há um grande conjunto de palavras inúteis. Assim como objectos inúteis. Inúteis por se inscreverem em lógicas deterministas. Numa altura em que as coisas ainda estão a começar e a expansão do acaso é a lei.
Franca mente com todos os dentes e unhas cada vez que diz pensa logo que existe ânsia na distância da terra com o horror de coisas aos molhos a atafulhar o sótão dos macaquinhos de imitação grosseira, contra a facção que tinha o poder de ficcionar as histórias da caras ou chinas imperiais bem tiradas à noite no terreiro do passo lento do fulano de domingo que plácido clorídrico entra discreto pela montra da loja de porcelanas.
Franca mente todos os dias crónicos agudos, surdos de desespero temperado com saltos do alto da sua importância relativa, improvável sentimento de revisão da matéria dada a baixo custo, saldo de verão mesmo os cegos de nascimento e ocaso do colar roubado em pleno sarau de ginástica ri-te Mica de delgadas mil lâminas que barbeiam mais rápidas que a própria sombra da azinheira que zomba de tudo desde que se tornou ex-trela que prendia o gato e o rato à sua posição de firme convicção e propósito como se fosse sem crer em nada nem ninguém que, como todo-o-mundo, sabe tão pouco que não chega a saber que não sabe.
Franca mente orgulhosa mente feliz mente, uma família inglesa criada e nada que se aproveite no mar da ignorância resoluta a subir com o aquecimento glu-glu como o peru que morre no natal dos animais que nunca souberam falar de carne e de peixe e de outras formas rudimentares de vida extra-terrestre de aquém e de além marte da guerra dos sem ânus que por tal rebentariam de riso com a forma oca dos que sofrem por agosto e com sentimento, delirante de conteúdo e reforma que haverá quem pague uma excentricidadezinha do interior desde que não seja o meu próximo a saber de onde vem a sorte.
Franca mente deliberada mente oficial mente da noite para o dia, filha de mãe em código morsa de dentes afiados pela rebarbadora mor do treino, fogo fátuo de gala e gola comprida, beira alta, virada para a direita de prior, idade média a rondar os mil menos poucos e bons pais de família que se ficam bem à mesa do orçamento grátis pelo correio sentimental e físico imoral como todas a muralhas que seguram a legítima verdade do reino.
Franca mente de mente e corpo são domingos e dias livres da prisão de ventre que dança com lobos nossos irmãos pela parte da mãe natureza morta de tédio e boy de jogo electrónico sorteado num sem curso nem diz coisa com coisa nossa de cada diagnóstico que crê no que não vê à noite quando os gratos são parcos e na dízima infinita periódica se somam totais e notas de música trocada por miúdos com guitarras e lérias, trocadilhos e troca de ilhas e penínsulas conforme as estranhas doenças que pairam na frente genética que me perdoa os pecados da culpa molecular.
Franca mente social mente frontal mente como tem que ser para ser como deve ser e mostrar à exaustão as coisas que ela ainda não viu nem quis ver com medo de ter medo do que poderia ver.
Às vezes vem de fora a razão, pedaço de intrusão que semente e germe em árvores hierárquicas de sons iluminados pela lâmpada de Alá, digno denota quando detona a explosão de ar inchado de orgulho pátrio e mau trio admira que não saibas as últimas derradeiras invenções ocasionais da sociedade com sumo de fruta da época clássica. Eu vi, com estes olhos que a terra há-de temer por serem escuros de luz negra fechada no subterrâneo ruidoso minado de nome e nado vivo a treze desmaio cansado de tanta importância despedida por mau apartamento com duas ou mais atoalhadas combinações de certezas com rigor mortis e funeral combinado dois em um vitalício para sempre ou até que a sorte os separe nas fases orgânicas e angulosas do ritmo concêntrico, como é possível que não aconteça nada quando acontece alguma coisa que não esperamos que seja o que já aconteceu e então vemos que não. Foi assim de madrugada a cama destapada e o sol esfrangalhado dançando perdido pelo éter retumbante de ondas com vozes misturadas de imagens gastas e fartas de serem cera que derrete outra vez numa forma deformada e parada, sem olhos, sem mãos, sem carteira nem beira mar plantado de urgência numa viagem a pé ante pé até ao fim da linha âncora e corrente de lava mais branco que a neve que derrete o mais endurecido dos ruminantes enfiados contra as tábuas com dores de cabeça repetidas até o vermelho se embaciar de negro e derrubar outro ditador no ciclo infernal de casas alugadas aos seis meses de véspera por não saber que logo a seguir há uma nesga de céu por onde passa trincada às doze baldadas que se esqueceram que tinham marcado um encontro com o destino e o tino que se entregou à sorte grande para saber mais do que os outros que gostavam de se esquecer que viviam para lá do que era possível e não era possível aparecer nem ser na têvê que só vê o que é mais perto do que é aviltante e não esquece que é verdade o que já passou há muitos anos quando ainda aconteciam coisas bizarras à porta de cada casa e não era preciso importar galões de gasolina para peregrinar as ilusões. Mas, e há sempre um mastim que é fiel e por isso morde com precisão enquanto defende o seu bem e os bens dos que são bem e sabem bem onde está o bem e como está bem de ver não interessa onde se quer chegar quando não se quer chegar a lado algum mas se sabe por interposta pessoa que há quem conte à noite os contos que tinham ficado por contar na manhã anterior e com tudo isso se agradeça ao seu a seu dono do mundo e arredores e nós, que ficamos apegados às coisas fúteis da diversidade que há na cidade e da diversão que há na são tomamos com o olhar que não vê porque é melhor não ver do que nevar à noite quando ainda o frio do riso quente se sente a brilhar no modelo incontinente da tal razão que vem de fora e só estorva.
Não existe um amor genérico. O amor tem sempre marca, e marca por ser amor. O amor que existe, quando existe, declara-se a uma entidade concreta, material e insubstituível. É assim a natureza dogmática do amor. Não vai pela margem das coisas, encosta-se directamente ao centro e centra-se no concreto. Não é genérico o amor. Cola-se com veemência à pele e impede a regular respiração dos poros. Exige, como se não houvesse tempo, a urgência do tempo todo e esquece as prosaicas questões do real e do sentido. Para o amor o sentido é tão só aquilo que sente e que não traz à razão, e nunca a razão que, por qualquer razão, traz o sentir. Aquilo que o amor sente é sentido mas não tem sentido nem espera sentido porque por ser amor não espera. E não há nada de genérico no amor. É por isso que o que se diz do amor, como por exemplo isto que eu digo do amor, é sempre um disparate. Não é transmissível a ideia de amor. Só seria transmissível se se desse o caso de o amor ser genérico e poder, sujeito aos artifícios da comunicação, radicar em códigos que não fossem absolutamente únicos de cada vez. Um dia se descobrirá, se houver tempo, a incontornável descontinuidade do amor, e a forma unívoca como, qual um código genético, o amor se manifesta. Num certo sentido chamar amor ao amor já é uma facilidade de linguagem que pressupõe alguma espécie de afinidade entre coisas tão diferentes. Porque o amor é absolutamente unívoco. Tão unívoco que não é o mesmo que vai de A para B e de B para A. Funciona, às vezes, como uma vibração harmónica, descrita, quem sabe se por uma sobreposição absolutamente única de ondas sinusoidais perfeitas. Mas não tem nada de genérico. Fervilha de intensidade própria e, por vezes, basta-se a si próprio, ignorante de totalidades e forças transversais. Fica no centro de tudo e transforma o centro em margem, trazendo o paradoxo para a simetria dos dias. Genérico seria se se pudessem dizer coisas concretas que fossem capazes de englobar o amor sem nos estarmos sempre a contradizer. Isso sim, seria genérico. Dizia amor, e toda a gente sentiria a mesma picada na espinha. Para isso bastava uma palavra e ficava tudo dito. Como dizer água ou céu ou luz. Palavras genéricas para ideias genéricas para pessoas genéricas. Amor não. Há sempre uma outra coisa que ainda não se disse e não é bem assim, estão completamente enganados, não tem nada a ver com isso, nem penses, não é isso que eu sinto, nem pensar, está tudo ao contrário, que disparate. Não. O amor é uma doença do indivíduo. Doença sempre rara, sempre incurável, sempre mortal. Mas nunca genérica.
Quando se corta o corpo, o corte que fica no corpo é um corte que fica para sempre como memória do corte que cortou o corpo.
Cortado, o corpo reage ao corte, como se o corte que o cortou fosse um corte sentido.
Cada corpo reage ao seu corte, cortando as ligações do corte ao resto do corpo; cortando de si o corpo cortado e salvando o corpo de um corte que o poderia cortar.
Existe entre o corte e o corpo cortado uma relação de semelhança.
Espera-se entre o corpo e o corte uma relação de pertença.
Quando um corte corta um corpo, encontra na reacção do corpo ao corte uma razão para ser corte.
Antes de cortar um corpo, um corte ainda não é um verdadeiro corte.
Depois de cortar um corpo, um corte já não é um verdadeiro corte.
Antes do corte o corpo é um corpo sem corte e sem memória de ter tido um corte.
Depois do corte, o corpo que foi cortado, é um corpo que tem um corte porque se recorda de um corte que teve.
Fotógrafos de todo o mundo procuram o retrato do corte no momento em que é corte.
Acreditam, aqueles que acreditam, que há um instante, disponível para um instantâneo, em que o corte é.
Perseguem então, os fotógrafos de todo o mundo, os que acreditam e os que não acreditam, o instante dinâmico em que sobre o corpo se manifesta o corte no seu esplendor insubstituível.
Esperam, os fotógrafos, que o corte se confunda com a imagem do corte.
Desejam, os fotógrafos, que o corpo ilumine a imagem do corpo.
Não é seguro que nenhum fotógrafo tenha alguma vez guardado o corte sobre o corpo no momento em que o corte se faz sobre a pureza elementar do corpo.
Divergem as opiniões e as certezas acerca da autenticidade dos cortes que dizem ter sido já impressos preto no branco.
Divergem também as certezas e as opiniões, sobre os corpos que foram cortados e que mostram a memória dos cortes que tiveram.
Nenhum corpo sabe, perante a evidência de um corte, onde ocorreu o corte que o separou de si próprio e cortou, para sempre o corpo dividido.
E se o corte que o corpo insiste é um corte que apenas cortou a superfície aveludada dos sentidos, pode acontecer que seja apenas um corte rudimentar, magra marca de um tempo que adiante se verá não ter acontecido.
Disse que sim podendo dizer que não, digamos assim, como se dizer sim ou dizer não fosse o meu degrau de liberdade. Disse que sim porque sim, podendo dizer não porque não, ou dizer não porque sim, ou mesmo dizer sim porque não. As razões do sim e as razões do não à espera de eco nos hemisférios cerebrais, no norte e no sul da consciência e na ligeireza de ir ali e já vir, à procura outra vez de mais razões para os porquês de sentir.
Disse que sim, querendo dizer sim porque sim, e logo a seguir, assim, sem mais nem menos, descobrir que dizer que sim, agora, aqui, assim, é quase o mesmo que dizer que não, porque se pode dizer sim querendo dizer não, e se pode dizer não querendo dizer sim. Também se pode dizer sim dizendo que se disse não ou dizer não dizendo que se disse sim. Nada é assim simples.
Disse que sim, assim, sem mais nem menos, para depois saber, como já antes sabia, que hoje, nestes dias assim, dizer que sim e dizer que não - deitar mais uma gota de água no mar - é a mesma coisa, assim mesmo. Porque manda a verdade, a tal verdade de que se fala, que nada seja diferente de não ser nada e tudo seja igual a ser tudo, sendo o nada e o tudo tão iguais como o sim o não e o mais e o menos e tudo aqui que já supus serem coisas opostas.
Disse que sim, sem vontade de dizer não, mas já me dizem que o sim que eu disse era não e o não que outros disseram era sim. Dizem-me que ao dizer sim não era bem sim que estava a dizer porque quem quer que dissesse não também sabia que o seu não era, ainda assim, um sim que não se dizia como sim mas como não. Foi assim que o meu sim é agora olhado como um não que eu não disse mas que me garantem que exactamente igual ao não que outros disseram e igualmente igual ao nem sim nem não dos que não disseram nada.
Disse que sim mas sei agora que o meu sim era muito diferente de outros sins que foram ditos por outros e que, muito provavelmente, o sim que eu disse nem sequer era igual ao sim que eu queria dizer. A verdade, sei agora, é que muitos sins e muitos nãos são iguais a outros sins e a outros nãos sem que alguém seja capaz de distinguir os sins dos nãos e os nãos dos sins.
Disse que sim mas já não tenho a certeza de ter dito o sim que queria ou mesmo se disse sim ou não, ou se não cheguei a dizer nem sim nem não na expectativa que outro qualquer soubesse dizer por mim esse sim que eu queria dizer. É assim que agora fico, com o sim atravessado na garganta como já estava antes quando me apercebi que era um sim que queria para subir mais um degrau na liberdade de poder cada um dizer não quando se tratasse da sua própria vontade.